Blog de Asas

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Interiorização da medicina no Agreste Pernambucano entra em segunda etapa

Propostas de expansão da residência médica em Caruaru/PE.

Propostas de expansão da residência médica em Caruaru/PE.

Hoje o projeto de interiorização da medicina conduzido em Caruaru pelo Núcleo de Ciências da Vida (NCV) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ganhou mais um campo de atuação. Aguardam autorização novos curso de pós graduação em medicina, com planos de iniciarem suas atividades já em 2015.

Enviamos ao Ministério da Educação (MEC) a solicitação de credenciamento de 7 (sete) programas de residência médica, todos em áreas de grande importância para o Sistema Único de Saúde (SUS) pernambucano, com clara necessidade social. Aguardam avaliação do MEC programas nas  áreas de medicina de família e comunidade, medicina intensiva, clínica médica, cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia, psiquiatria e medicina paliativa.  São 30 vagas/ano de residência médica novas em Caruaru, que foram construídas a partir de grandes Parcerias Público-Públicas entre UFPE, Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Estadual de Saúde, Ministério da Educação e muitos trabalhadores do SUS que dá certo, com boas possibilidades de influenciarem a expansão dos programas de residência por outras cidades do agreste. Ofertar residências médicas de boa qualidade tem sido uma das estratégias mais bem sucedidas enquanto fator de atração e fixação de médicos no país. É mais uma política pública que vem para induzir a interiorização da assistência à saúde no SUS.

Importante ressaltar que a construção desse conjunto de programas segue atual conjuntura nacional da formação médica, em consonância com as mudanças da legislação sobre o ensino da medicina no Brasil trazidas pela Lei do Mais Médicos, que preconiza que em toda instituição de ensino que ofereça curso de graduação em medicina, deve existir uma vaga de residência para cada egresso da graduação dessa instituição. No caso do curso de medicina de Caruaru, nossa meta e obrigação legal é de oferecer ao menos 80 (oitenta) vagas de residência médica nos próximos anos. A universalização da residência médica entre os médicos tem potencial para trazer transformações muito positivas para a forma de organização e exercício da medicina no Brasil, assim como para o SUS e para as condições de acesso aos serviços de saúde no Brasil. A UFPE larga na frente pleiteando credenciamento de 37,5% de sua meta de vagas já no primeiro ano de atividades.

Balanço dos projetos de residência médica do curso de medicina de Caruaru:

– 7 programas de residência médica com 60h semanais (80-90% de atividades práticas e 10-20% de atividades teóricas) sob responsabilidade dos preceptores da UFPE, da rede municipal e da rede estadual de saúde;

– Um total de 30 vagas/ano em medicina de família e comunidade, medicina intensiva, clínica médica, cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia, psiquiatria e medicina paliativa;

– Um total de 65  bolsas de residência médica, considerando todos os R1’s, R2’s e R3’s;

– Mais investimento público federal na região: as bolsas de residência médica pleiteadas são no valor de R$ 2976,26 (dois mil novecentos e setenta e seis reais e vinte e seis centavos) cada uma. Isso significa mais de um milhão de reais em bolsas para 2015, mais de 2,1 milhões de reais em 2016 e mais de 2,3 milhões de reais em 2017 para essas 65 bolsas de residência médica pleiteadas.

Muito obrigado a todos e todas que se envolveram na construção desse grande projeto,  o apoio da UFPE, em especial a Rodrigo Cariri, Izaias Junior e Raab Albuquerque pela presença decisiva no processo de envio dos projetos à Comissão Nacional de Residência Médica, secretaria municipal de Saúde de Caruaru e aos trabalhadores dos serviços de saúde da região que aceitaram o desafio de radicalizar na construção de um SUS verdadeiramente escola!

#VemPraCaruaru #MedicinaCaruaru #UFPE #ResidênciaMédica #ConstruindoUm GrandeSUSescola

Diretora do Sindicato dos Médicos de Pernambuco entrega o cargo (ou “Novo Ensaio sobre a Cegueira”)

Merece leitura atenta a carta de desligamento da diretora do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (SIMEPE) da médica Rafaela Alves Pacheco, diante da escalada da intolerância promovida pela diretoria do SIMEPE e apoiada por assembléia de médicos. Denuncia a cegueira que tomou conta do debate sobre o “programa Mais Médicos para o Brasil”: essa carta é um verdadeiro “Ensaio sobre a Cegueira”:

“O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. (…) Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.” [Trecho de resenha do livro “Ensaio sobre a Cegueira”, do escritor português José Saramago.]

 

Já são 6 os diretores do SIMEPE que pediram afastamento desde a guinada conservadora do movimento sindical médico em Pernambuco. E que fique claro: críticas ao programa mais médicos devem ser feitas (algumas já foram feitas aqui no blog por exemplo). Porém, elogios também: cerca de 11 milhões de pessoas passarão a contar com atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS), considerando o contingente de médicos envolvidos. A quem interessa negar o direito ao acesso à serviços de saúde aos brasileiros?

 

Todo apoio a Rodrigo Cariri e Paulo Santana!

Todo apoio aos 6 diretores do SIMEPE que recusam cegueira!

Abaixo, a íntegra da carta da médica Rafaela Alves Pacheco:

 

“A socialidade primária feita de coisas simples e arranjadas, de vizinhança e solidariedade está perdida no tempo. Nesta socialidade o ser humano não tem medida, ele é visto pela criatura que verdadeiramente é, na sua essência. Na sociedade de homens inteiros as sofisticações não existem. Não deve haver complexidades. O homem trabalha e divide o trabalho, ele sustenta e divide o sustento. Não há que armazenar porque sente a presença do semelhante. Esta sociedade, infelizmente, está no passado quase remoto, porém, não se perdeu na memória do poeta.”

Marco Antônio Castelli

 

Recife, 29 de agosto de 2013

Caríssimos e caríssimas,

Há tanto o que falar e me pego subitamente sem saber por onde começar. Então, me permito começar pelo começo.

Muitos(as) de vocês conhecem boa parte de minha história. Sou cearense, nascida em Fortaleza, filha primogênita de um casal de funcionários públicos: minha mãe, sertaneja, professora, formada em Pedagogia. Meu pai, serrano, terminou o segundo grau, mas não fez nenhum curso superior.

Os dois vieram de famílias simples e de proles grandes. Meu pai tem dez irmãos. Minha mãe, 14. A vida deles nunca foi muito fácil, especialmente a de minha mãe. Meu avô materno fez uma morte súbita ainda jovem e minha avó (que todos vocês bem conhecem, por repetidas vezes eu citar seus sábios dizeres em reunião) precisou redobrar seus trabalhos com costura e bordado para conseguir a difícil tarefa de educar seus filhos. Educação essa que lhe parecia sagrada e da qual não abria mão, até porque pessoalmente nunca a teve.

Sou a segunda médica da minha família. Tenho um tio materno médico pediatra. Sei na carne as dificuldades que minha família e eu passamos para que esse meu sonho acontecesse. Não ser nascida em família abastarda ainda castra os sonhos de muita gente nesse país.

Eu consegui seguir o rumo que desejei, mas tenho a clareza que muitos não o fizeram, não porque não souberam desejar. Ou porque são “menores”, “piores” ou “mais fracos”. Não porque não foram “persistentes”. Há todo um sistema que retroalimenta e culpabiliza o inconsciente das massas com essa falsa certeza. Muitos não possuem a possibilidade de escolher seus caminhos de forma livre porque não tiveram oportunidade. Porque o jogo está todo errado. Porque no mundo em que vivemos não é suficiente ser. É preciso ter.

Nesse cenário há duas escolhas: a primeira, manter-se no estado das coisas e seguir no rumo das ondas, aprendendo a nadar e evitando o risco de se afogar. E há uma segunda escolha, mais perigosa, mais tênue e instável, que é a de ousar, de remar contra a maré. Eu escolhi há muitos anos, em nome dessas tais e tantas pessoas mais humildes e sem rumo que dedicaria meu suor, minha força, minha cognição e meus dias nessa segunda proposta, de modo a permitir que tivéssemos um dia, um mundo de fato partilhado entre todos e todas. É ideológico. É pessoal, é político. É existencial.

Assumi e assumo diariamente os riscos e contradições dessa escolha e construo minha trajetória absolutamente balizada por essa convicção. Alguns chamam isso de paixão. Para muitos pode parecer piegas, insensato. Pode parecer ridículo, obsoleto. Utópico demais. Mas acredito que somos livres para optar, assumindo a responsabilidade que todo poder nos proporciona. Inclusive o poder de pensar.

Minha escolha profissional dialoga diretamente com essas questões. E desde estudante, construí caminhos de protagonismo tanto de cuidado com o outro, como de cuidado com o mundo. Comecei a fazer atividades comunitárias, a pisar na lama e a sentir o cheiro do Brasil ainda com cara de menina, quando consolidei ainda mais esse pensamento. Não me sinto seduzida pela pompa que a medicina desenhou ao longo de sua história. Encanto-me é com a possibilidade de olhar no olho das pessoas, de sentir o calor que elas passam, rir suas risadas, chorar seus prantos, sejam ricas, sejam pobres. Tenham dentes na boca ou não. Eu quero ajudar a produzir plenitude de vida para mim e para os que me cercam, não necessariamente nessa ordem. Eu sou uma médica que gosta do bicho gente.

Escolhi participar diretamente das entidades médicas há mais de três anos, mas acompanho as posturas do SIMEPE há quase 13 anos. Vi, desde há muito, um sindicato que se destacava por ser diferente.

Era diferente, porque apesar de fazer movimento de área, equivocada construção histórica da organização dos trabalhadores que retroalimenta o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, não priorizava uma pauta auto-centrada. Mesmo com todas as contradições e momentos específicos, partilhava a pauta com a agenda de consolidação do SUS, com os demais trabalhadores da saúde e se importava verdadeiramente em construir junto com a opinião pública e sociedade.

Era diferente, porque se destacava regional e nacionalmente por ter um discurso combativo sim, mas qualificado e construtivo. Protagonizou grandes e belas lutas, tensionando importantes vitórias que extrapolavam o umbigo da categoria. O Brasil inteiro sabia que o SIMEPE era diferente, a entidade sempre foi procurada para opinar sobre um tudo. Essa casa cresceu, vinha mudando de cara, mas há muitos anos prezou por ser para além de uma entidade representativa de médicos. O SIMEPE fazia movimento social.

Venho de uma geração nascida após a reabertura política brasileira. Dei meus primeiros passos e fui crescendo junto com a redemocratização. Costumo participar e construir por dentro os processos e, sendo escutada, respeitada e bem vinda, topo inclusive os enfrentamentos. Pela palavra. Pelo argumento. Mesmo com todas as divergências, topo discutir e encontrar um denominador comum que possui um único norteamento e fiel nessa balança: o bem estar das pessoas. A defesa da vida das pessoas.

Vim de seis anos de movimento estudantil, de mais seis anos de medicina de família e comunidade, dois desses de medicina rural. Participei e participo do movimento feminista, da reforma psiquiátrica, do movimento de reforma sanitária. E esses capítulos da minha história moldaram e moldam o que sou hoje. É por essa história que vivo, ela é meu maior patrimônio. E é por ela que falo agora.

Sempre tive múltiplas diferenças e discordâncias com vocês. Na verdade, com as entidades médicas como um todo. Nunca gostei de alguns silêncios seletivos e de uma variedade de questões e posturas internas e externas do movimento médico, ao meu ver bastante conservadoras. Nunca me senti confortável com o corporativismo que coloca o bem estar do médico em primeiríssimo lugar. Que escolhe calar, a falar. Mesmo que isso custe o zelar pela boa medicina e pelo bem estar dos pacientes. E que ajuda, por consequência, a manter uma inércia social que há mais de 500 anos corta e sangra os mesmos. A mesma gente brasileira de sempre.

A nossas concepções de missão dessa casa já eram, de saída, diferentes. Entrei no SIMEPE para fortalecer a agenda do SUS, para construir qualidade na medicina e para defender os bons médicos e suas equipes. Essa sempre foi minha maior mobilização. Sempre fui muito honesta com vocês quanto a essa diferença, nunca escondi essas vicissitudes. Mas foi muito duro perceber o crescente dessas nossas diferenças. Segui com meu espírito crítico chamando as partes a pensarem, mantive-me falando mais internamente e calando mais externamente, por respeito a esse grupo e as coisas que acreditei serem ainda possíveis de serem construídas com vocês. Um silêncio caro, que me faz sofrer horrores nesses últimos meses.

Mas infelizmente o que eu temia aconteceu. O esquentar dessa guerra sangrenta, a agudização das dicotomias, a fervura apaixonada das discordâncias ideológicas culminaram com o esbravejar uníssono e inconsequente da categoria médica. Que se perdeu no discurso, que não soube pautar as importantes e pertinentes considerações que trazia. Nada além da raiva de nunca ter perdido antes. Não separou o joio do trigo, os pleitos de direitos, dos de privilégio. Não soube ser generosa. Não soube ser estratégica. A indignação de perder parte do seu histórico biopoder é inaceitável para muitos, que preferem esperar na antessala da nação, enquanto alguém mágico resolva (ou não) construir o tal país de maravilhas que tanto merecemos. O Brasil precisa de mais.

As lideranças médicas optaram por abrir uma caixa de Pandora, que não sei sinceramente se irão conseguir fechar. Dispararam uma onda e vem perdendo de forma avassaladora a credibilidade social e colocando-nos, todos, numa berlinda que nunca fiz por onde estar.

As máscaras seguem caindo e mostrando, a todo momento, a todo gesto, quem realmente é quem. As pessoas nobres e toscas dos dois lados. Porções de nobreza nas considerações de ambos os segmentos. Pessoas da base e do governo azeitadas pela mídia e opinião pública em franco maniqueísmo. Muito grito, muita indignação, muito desrespeito. Muito ódio.

Definitivamente não funciono nesses termos. Não foi com isso nem pra isso que vim a esse mundo. Sinto-me cada vez mais escanteada e menos escutada nessa casa. Por mais que eu fale, argumente, persista, venho assistindo ao ascenso de uma agenda fortemente corporativista e conservadora por parte das entidades médicas e especialmente do SIMEPE. Agenda essa que não me move, só me comove.

Enterrar o ministro da saúde e por consequência toda a atual política de saúde do país e do SUS por conta da discordância quanto ao Programa Mais Médicos não combina com minha história.

Assistir incólume a toda a perseguição e coação de pessoas importantes pro SUS e pro SIMEPE por parte de uma base raivosa e revanchista, sem absolutamente nenhum respeito e pronunciamento em defesa dos mesmos por parte dessa diretoria não combina com minha história.

Uma campanha de mídia que ataque frontalmente o SUS tratando-o como um navio afundando ou um avião caindo e a comparação falada em rádio de que médicos estrangeiros são “pernas-de-pau” na medicina não combina com minha história.

Mas o que o SIMEPE fez na assembléia da última segunda feira 26 não tem nome. Pelo que se consagrou chamar de ética e pela defesa dos médicos, optou-se por perseguir, retaliar e atacar…médicos! Os maiores e mais poderosos, xingados. Os menores, processados, podendo perder seus registros profissionais. Porque ousam discordar. Convivo, trabalho e milito há muitos anos com Rodrigo Cariri. Sei de sua história, de seu valor, de sua coragem. E sei que vocês também sabem. Expor ele e quem quer que fosse a essa situação vexatória por discordância política, repito, não tem nome.

O dedo julgador da categoria médica acordou para apontar não omissões de socorro, maus tratos aos os pacientes, desvios de verba do SUS, escalas não cumpridas de plantão, gestores corruptos, cobranças indevidas de procedimentos, relação incestuosa com a indústria farmacêutica. O dedo apontou para quem topou discordar, quebrar o feitiço. Autoritário, vertical, covarde. Inaceitável. Bem destoante de tudo o que vi na história dessa casa até então.

E em sendo assim, com essa sequencia de acontecimentos, não me resta outra alternativa. Coloco hoje meu cargo de diretora de relações institucionais do SIMEPE à disposição. Não me sinto representada nem represento esse tipo de agenda e atitude.

Tenho a clareza que tentei de um tudo. Trabalhei e doei o meu melhor para construir o bom trabalho, o bom debate e a boa política ao longo desses três anos. Lutamos juntos por muitas coisas que julgo importantes e aprendi a conviver e a ter amizade pessoal com boa parte de vocês. Nossas diferenças não nos impediram de nos afeiçoarmos e permaneço tendo afeto verdadeiro por muitos que aqui ficam.

Sei que uns lamentarão, outros comemorarão e outros sentirão alívio com minha saída. De toda forma, agradeço a oportunidade de convívio e aprendizagem. Aprendi muitíssimo com vocês. Espero ter cumprido o meu papel. Espero, também que tenham a grandeza de fazer uma auto-crítica e ajustar trajetória para lutarem a boa luta. Força e disposição sei que não faltarão. E o SUS precisa demais da força de luta que o SIMEPE sempre lhe ofertou.

Agradeço especialmente aos funcionários e funcionárias do SIMEPE que sempre e tanto me acolheram. Meu carinho e meu desejo de boa sorte a todos e todas.

Desculpem o prolongamento da carta. Sempre tanto a dizer.
Atenciosamente,

Rafaela Alves Pacheco.
Médica de Família e Comunidade
Militante em Defesa da Vida.

“Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até o ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas somos mais juntos. Sabemos mais uns dos outros e é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente…”

Guimarães Rosa

“Mais Médicos” ou o trabalhador pós graduando: trabalho & formação rimam com precarização?

Mais Médicos” ou o trabalhador pós graduando: trabalho & formação rimam com precarização?

Por Marcos Asas, médico de família e comunidade, diretor de saúde da ANPG e conselheiro do Conselho Nacional de Saúde

Muita gente tem perguntado minha opinião sobre o programa “Mais Médicos”, lançado no dia 08 de julho pela presidenta Dilma Rousseff e pelos ministros da saúde Alexandre Padilha e da educação Aloizio Mercadante. Aproveito para colocar aqui que estou contemplado quase na íntegra pelo artigo publicado ontem pelo professor Gastão Wagner. Sintetiza muito bem o que o programa “Mais Médicos” representa de avanço e de retrocesso e aponta outros “nós” do Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não tocados pelo governo, além de apresentar propostas alternativas relacionadas a graduação e a residência médica. Vou aprofundar o debate nos pontos do programa do ponto de vista da formação em nível de pós graduação (que inclui a residência médica) e do trabalho em saúde, dialogando com o artigo do professor Gastão:

1. Sobre a forma de “contrato” indicada pelo governo, é importante que fique claro o que isso significa. Ainda que o valor anunciado pelo governo (R$ 9168,20 líquidos) seja superior ao salário médio da categoria médica no Brasil (R$ 8.459,00 segundo o IPEA), é importante lembrar que se trata de contrato temporário (máximo de 3 anos, renovável por outros 3) e precário. O governo defende que a inscrição no programa não configura vínculo trabalhista. É uma “bolsa-formação” e não salário, por agregar um curso de especialização. Por ser uma bolsa, não é tributável pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), mas implica na perda do direito de férias, 13° salário, FGTS, insalubridade e estabilidade, pois trata-se de contrato temporário. Por obrigar a adesão dos bolsistas ao INSS como contribuintes individuais, não há contribuição patronal (da União, no caso) para a previdência. Isso significa a redução da seguridade social. Se a moda pega, o trabalhador da saúde será cada vez mais formados por pós graduandos, num regime duplo, trabalho & formação: continuação da formação universitária+contrato temporário de trabalho/especialização+Menor cobertura da seguridade social+Contribuição individual ao INSS.

2. Esse tipo de contrato de trabalho se assemelha, nessa perspectiva, aos contratos das bolsas de residências em saúde e dos programas de pós graduação strito sensu (mestrado e doutorado). Assim como as residências em saúde são programas de pós graduação da modalidade lato sensu, as bolsas-formação estão atreladas a cursos de especialização, também tipo de formação em nível de pós graduação na modalidade lato sensu. Apesar dessa semelhança, é importante reforçar que essas especializações não estão sujeitas aos parâmetros das residências em saúde, em termos de projeto pedagógico, preceptoria e regras mínimas de funcionamento.

3. Tanto a residência médica quanto a residência multiprofissional em saúde possuem comissões nacionais de regulação, avaliação e acompanhamento. Ainda que carregue problemas na atuação relativa a esses três âmbitos, a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) contribui decisivamente para a qualidade dos programas de residência médica. Não é por acaso que a residência médica é considerada o “padrão ouro” na formação médica. Para se ter uma idéia, a carga horária mínima da residência médica supera as 5.000h (cinco mil horas) em 2 anos. Mesmo sendo mais recente e ainda oferecendo poucas vagas, as residências multiprofissionais em saúde caminham para a mesma direção (e duração).

4. As especializações são cursos em nível de pós-graduação lato sensu que não dependem de autorização, reconhecimento e renovação do reconhecimento pelo Ministério da Educação ou qualquer comissão. Para Instituições de Ensino Superior (IES) já credenciadas, a sua oferta é livre desde que esteja dentro da área de competência da IES e possua carga horária total mínima de 360h (trezentos e sessenta horas).

5. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) permite aos trabalhadores de saúde a liberação por um período de até 8h semanais para atividades de docência e/ou de educação permanente. O reconhecimento da importância da educação permanente foi algo inclusive comemorado quando a PNAB foi atualizada em 2011. É fácil perceber que a carga horária de 1 ano de educação permanente é superior a 360h, permitindo que as bolsas de formação ocupem esse espaço. É um outro sujeito, que parece residente mas não é: o trabalhador pós graduando.

6. Apesar do discurso governamental quando do anúncio do programa “Mais Médicos” apontar a necessidade de atuar na qualidade da formação dos médicos, o central do programa é claramente garantir o provimento de profissionais. Considerando o atual estado de vazio assistencial a que milhões de brasileiros estão sujeitos quando necessitam de cuidados de saúde, é elogiável que o governo esteja decidido a enfrentar essa situação dramática. Melhor ainda se isso estiver conectado às necessidades de saúde da população e às áreas do SUS com mais carências de especialistas. A depender do valor de uso que essas especializações consigam representar para o trabalhador de saúde, essa pode ser uma oportunidade inclusive de qualificar a formação dos profissionais. Mas precisamos debater o que a consolidação desse papel assistencial da pós graduação representa nos seus múltiplos sentidos: formação de especialistas; indução/regulação do mercado de trabalho; redução da seguridade social para os trabalhadores; precarização do trabalho; trabalho temporário; ampliação do acesso à serviços de saúde; integralidade; controle social e educação permanente.

7. Insisto no que pontua o professor Gastão Wagner. Precisamos de “(…) uma ampla e generosa política de pessoal: repensar a formação, carreiras com responsabilidade, condições de trabalho adequadas, e educação permanente.(…)”. É uma sinuca de bico: o governo federal resistiu enquanto pode à criação da carreira de estado para trabalhadores de saúde, apesar da declaração recente de apoio; não conseguiu criar uma Fundação Estatal para a área e enfrenta fortes resistências à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) nas universidades e no Conselho Nacional de Saúde (CNS). É importante lembrar que mesmo com todas as contradições dessas duas modalidades de administração pública indireta, do ponto de vista da garantia de direitos, ambas ao menos poderiam garantir aos trabalhadores toda a seguridade social da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), além de garantirem o cofinanciamento da previdência através da contribuição previdenciária patronal. Nada impediria que o governo oferecesse complementação da formação: as especializações poderiam compor o período probatório, por exemplo. Inclusive no caso da carreira de estado.

8. A opção pela contratação temporária dos trabalhadores de saúde através de bolsas-formação, com piores condições de trabalho em relação à CLT ou ao serviço público, é algo que enfraquece a proposta por torná-la pouco atraente ao trabalhador, mesmo com a oferta de especialização lato sensu e rendimento 8,3% acima da média salarial nacional da categoria. Tende a ser vista como mais um espécime da vasta fauna brasileira de modalidades de precarização do trabalho. Lembrando que consolidar a precarização do trabalho médico não contribui para reduzir a precarização dos outros trabalhadores da saúde. Se as categorias com mais força de pressão forem derrotadas, fica mais difícil ainda para outras categorias profissionais menos organizadas defenderem seus direitos.

9. Precisamos forjar um pacto social em torno da plena consolidação do SUS, nosso sistema público de saúde. Isso só se dará a contento se as pessoas puderem compreender os problemas do setor saúde e passem a defender que a atenção à saúde das pessoas seja socializada, o que só será possível resolvendo o subfinanciamento crônico à que o SUS é submetido, como bem respondendo as questões levantadas aqui, além do que foi didaticamente colocado pelo professor Gastão Wagner em seu artigo. É importante ressaltar que consolidar o SUS se trata de questão de Estado, e como tal, necessita passar por um debate franco e qualificado com a sociedade brasileira.